Outro dia em minha casa durante a tarefa de organizar livros e
descartar velhos materiais, reencontrei entre eles a cópia de um texto
maravilhoso escrito por Freud em (1915), pouco conhecido, mas não menos interessante e que tem o seguinte título Sobre
a Transitoriedade. Não recordo bem meu objetivo quando fiz a primeira leitura, outrossim reler este texto me transportou a um novo sentido.
Para situá-los a respeito; em síntese, o texto de Freud é a narrativa de uma caminhada entre campos onde Freud acompanhado de dois amigos contemplavam a
natureza e entre uma conversa e outra Freud detém sua atenção ao comportamento de um dos amigos que, apesar
de admirar a beleza ao seu redor, não absorvia qualquer alegria daquele
instante, ao invés de encanto o que ele sentia era o medo da perda, ou seja, para ele de nada adiantaria alegrar-se com a beleza daquele cenário uma vez que ela
acabaria.
De certo, o texto amarra-se na transitoriedade do belo, ali, Freud
destaca que sem a certeza da finitude, não daríamos valor a beleza do que somos
e temos. Não demorou muito para que
neste mesmo texto Freud concluísse, que a tristeza do seu amigo na realidade,
não se restringia a “morte da beleza” era um luto pela morte do que amamos, e
portanto, belo ao nosso olhar.
Ao concluir a
releitura, pensei nas diversas situações nas quais contemplamos e nos afastamos do que é amável e redobramos nossa vigilância com aquilo e aqueles que apreciamos, mas, não criamos elos,
vínculos ou afeições, pois esta ação traz consigo a nossa percepção ilusória de infinitude, deixando de lado a vivência do real, que basicamente é o início, meio e fim. Sem os vínculos acreditamos que nada é transitório, portanto congelamos uma experiência de vida, hesitamos em cuidar/amar um bichinho de
estimação, estamos frouxamente ligados uns aos outros e atribuímos a isto a falta de tempo, procrastinamos os sonhos, desejos e projetos de vida,
buscamos fórmulas de juventude eterna, não enxergamos quem somos “de verdade” e assim como o jovem amigo de Freud desacreditamos na
beleza de viver a transitoriedade de cada dia.
Por saber que vale muito a pena a leitura deste texto maravilhoso, compartilho
com vocês na íntegra.
Com todo afeto expresso!
[Sobre a Transitoriedade (1915) – Freud]
Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de
campos sorridentes na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem mas
já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraia
disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza
estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno,
como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou
poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e
admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à
transitoriedade.
A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como
sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso
desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião
contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e
da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se
desfazer e nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso.
De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar
a todos os poderes de destruição. Mas essa exigência de imortalidade, por ser
tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito
à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro. Não vi como
discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção
em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de
vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma
perda de seu valor.
Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor
da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor
dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a
transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à
beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano
seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato
ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para
sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas
lhes empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso
nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor porque a beleza e a
perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder
seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em
que os quadros e estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou
que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as
obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era
geológica na qual cesse toda a vida animada sobre a terra; visto, contudo, que
o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua
significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós,
independendo, portanto, da duração absoluta.
Essas considerações me parecem incontestáveis, mas observei que não
causara impressão quer no poeta quer em meu amigo. Meu fracasso levou-me a
inferir que algum fator emocional poderoso se achava em ação, perturbando-lhes
o discernimento, e acreditei, depois, ter descoberto o que era. O que lhes
estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes contra o
luto. A ideia de que toda essa beleza era transitória comunicou a esses dois
espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza; e,
como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua
fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade.
O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural
ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém,
o luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não
podem ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras
obscuridades. Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor -
que denominamos de libido - que nas etapas iniciais do desenvolvimento é
dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito
inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo
sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem
perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será uma vez
liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar
temporariamente para o ego, mas permanece um mistério para nós o motivo pelo
qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo
tão penoso, até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para
explicá-lo. vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia
àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é
o luto.
Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano
depois irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo das belezas. Não só
destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava
em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa
civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas
esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as
raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos
instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que
jugávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação
pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto
do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão
efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis.
Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim provada de
tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que
nos sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais
próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se tenham tornado
mais vigorosos. Contudo, será que aqueles outros bens, que agora perdemos,
realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem tão
perecíveis e tão sem resistência? Isso parece ser o caso de muitos de nós; só
que, na minha opinião, mais uma vez, erradamente.
Creio que aqueles que pensam
assim, e parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o que era
precioso revelou não ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado de
luto pelo que se perdeu. O luto, como sabemos, por mais doloroso que possa ser,
chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo o que foi perdido, então
consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto
ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos igualmente,
ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação
às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado,
verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização
nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a
guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do
que antes._________FREUD, Sigmund. Sobre a Transitoriedade. In: Obras Psicológicas
Completas: edição standard brasileira. Volume XIV – A história do movimento
psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916),
pág. 313-319.